The Weapon – A Arma
Este texto nunca havia sido publicado no Brasil, então esta é a primeiríssima tradução disponível em Português. A tradução possui dois hiperlinks para o caso de o leitor desejar obter uma informação um pouco mais detalhada sobre os termos.
A Arma
(Tradução livre original do blog Eu, Asimov — por João Wolf)
A sala do conselho estava em absoluto silêncio. De uma plataforma elevada, cinco marcianos observavam de cima para baixo o Homem da Terra que estava em pé na frente deles. Suas faces estranhamente felinas não tinham expressão alguma. Somente seus olhos exibiam algum sinal de vida. Com um brilho esverdeado, eles penetravam até o âmago mais profundo do ser que era Preston Calvin.
De sua cadeira bem ao centro, o Chefe dos Anciãos de Marte começou a falar: “Seu pedido para uma audiência foi concedido, Homem da Terra. O que você deseja dos Anciãos de Marte?”
“Ajuda.” A voz de Calvin cortou o ar como uma faca. Com esses Marcianos, ser direto era o melhor tipo de diplomacia. “Ajuda com nossa luta contra as forças da crueldade e da maldade.”
As vibrissas cinzas do Chefe Ancião vibrou por um segundo. “Marte não interfere com a Terra. Não ajudamos.”
“Sem sombra de dúvida vejo uma certa desinformação quanto aos fatos, Excelência,” disse Carl, com urgência na voz. “Em nome de toda a humanidade, eu imploro por auxílio. A Democracia não pode ser derrotada”.
“Os assuntos Terrenos tem sido acompanhados com interesse,” foi a calma resposta, “mas cada mundo deve resolver seu próprio destino.”
Os ombros de Calvin se curvaram. Ele havia sido avisado a respeito dessa super-raça sem emoções, produto de incontáveis eons de evolução, mas a realidade era difícil de encarar.
Ele tentou outra estratégia: “Ajude-nos para o seu próprio benefício, então, se não pelo nosso. Se os bárbaros vencerem, a Terra será dominada por um culto ao ódio. Um perigo que poderá ameaçar até mesmo Marte.”
“Não tememos a Terra, você já deveria saber disso.” Não havia raiva, simplesmente uma indiferença fria que a voz marciana emanava. “Permitimos que vocês colonizassem os planetas Jovianos e Saturno, que abandonamos há muito tempo, mas de Marte nós não abriremos mão.”
Calvin suspirou. “Eu não estou pedindo uma ajuda extensa. Tudo o que eu preciso é de uma arma. Vocês, que são tão sábios e poderosos, que poderiam possuir um universo e, no entanto, rejeitam tal ideia; seguramente, com seu conhecimento vasto, não lhes custaria nada jogar uma migalha para a jovem civilização da Terra, para que também possamos crescer grandiosamente e florescer?”
Os cinco Anciãos reunidos murmuraram entre si por alguns momentos. O Chefe Ancião falou sua resposta, lentamente. “Você tem razão – nossa sapiência é grande. Tão grande que sabemos uma coisa com certeza: toda civilização deve resolver seu próprio destino. Não iremos oferecer auxílio nenhum.”
A indiferença daqueles seres parecia inexpugnável, mas Calvin decidiu fazer uma última tentativa.
“Vocês tem receio, eu imagino, de que eu esteja pedindo um instrumento de destruição poderoso que iria causar a devastação da Terra. Isso com certeza vocês estariam corretos em negar. Na verdade, o que peço é exatamente o oposto – algo que teve um papel central em sua própria história.
Nós temos estudado a história de Marte e descobrimos algumas coisinhas. O início da sua história, assim como a nossa, é cheia de guerras e destruição; de repente, vocês aparecem nesse estado mental sem nenhuma emoção, no qual nenhuma guerra ou sentimentos malignos podem existir. Nós descobrimos como aconteceu essa mudança e o que pedimos é uma mudança parecida para os terráqueos.”
Aqui foi feita uma pausa que não pedia nenhuma resposta, apenas um sinal de cabeça para que continuasse.
“Existe uma glândula no corpo humano, atrofiada e aparentemente inútil, chamada glândula pineal. Existe uma maneira, que só vocês sabem, de ativar essa glândula e reativar suas funções. Essas funções, estamos certos, irão atuar como contrabalanço às glândulas suprarrenais, que produzem o medo e a raiva.
“Um mundo com glândulas pineais ativas seria um mundo sem medo ou raiva, seria um mundo da razão. Será que o conselho dos Anciãos de Marte está preparado para nos negar esse conhecimento que trará tão grandes benefícios? Seria totalmente ilógico.”
“Você está errado,” afirmou o Chefe Ancião. “Não é nada ilógico. Será que a Terra deseja perder as emoções assim como Marte?”
“Não”, admitiu Calvin, “mas não é necessário ir tão longe. Vocês possuem um caso extremo de glândulas pineais hipertrofiadas. Se diluir bem, a solução química que busco deverá simplesmente amenizar as violentas emoções de medo, raiva e ódio. É só isso”.
“Então você sabe que é uma fórmula química que produz o efeito desejado?”
“Sim, e também sei que é uma fórmula inorgânica”, foi a resposta. “O conteúdo de uma pequena garrafa de iodo despejado em um reservatório, consegue restaurar ao normal as glândulas tireoides de toda uma cidade. A Solução Pineal, vamos chamá-la assim, sem sombra de dúvida reagiria da mesma forma. Tudo o que eu peço é o método de preparação desta solução química. Essa é a única arma que desejo”.
O Chefe de Marte se curvou para mais próximo de Calvin e falou com uma voz bem suave. “Há muito tempo atrás, Marte, ao se deparar com a sua iminente destruição, conseguiu encontrar os meios para a sua salvação. A Terra deve fazer o mesmo. Se o mero erguer de um dedo fosse só o que tivéssemos que fazer para salvá-la, ainda assim o dedo não seria erguido. A Terra deve salvar-se a si mesma.”
Os lábios de Calvin se contorceram num espasmo ao se dar conta de que havia jogado sua última cartada. Sua mão havia perdido; seus Ases foram superados. Ele se virou em desespero e saiu do salão de reunião.
Sua mente trabalhava febrilmente enquanto ele subia em espiral até a superfície inóspita do planeta Marte. De algum jeito ele tinha que conseguir arrancar a informação da boca relutante daqueles icebergs ambulantes. Sem esse conhecimento ele não poderia voltar para o seu mundo, onde a democracia se agarrava por um fio ao seu último ponto de apoio no litoral oeste do que um dia havia sido os Estados Unidos. Ele preferia morrer no espaço a retornar sem essa informação.
Foi então que ele lembrou de Deimos!
Deimos! O laboratório gigante de Marte! Era lá que eram reunidos todos os segredos científicos daquela gente – inclusive o segredo da arma que ele havia solicitado. Ele imaginou um plano louco para invadir aquela fortaleza inexpugnável do conhecimento e conseguir pela força aquilo que ele não havia conseguido através dos apelos e súplicas.
Ele nem parou pra pensar duas vezes no assunto, pois a razão o teria impedido de seguir em frente. Há muito tempo atrás, antes que a super-raça dos marcianos tivesse sido encontrada, uma expedição exploratória havia feito uma tentativa de descida em Deimos e foi avisada para se afastar por uma estranha nave espacial. Quando uma segunda expedição, maior que a primeira, ignorou os avisos e seguiu em frente, nunca retornou.
Calvin não tinha nenhuma ilusão, naquele momento, quanto à certeza de falhar em sua tentativa — mas ele não se importava. A alternativa ao sucesso era se tornar mártir, e no seu presente estado mental até aquilo seria bem vindo.
As horas que ele levou para chegar até a pequena lua passaram com inacreditável vagareza, mas finalmente seus penhascos irregulares surgiram diante dele. Enquanto ele prudentemente a circulava, ele imaginou se não haveria alguma espécie de campo de força ao redor. Esse era o primeiro obstáculo, já que Calvin não ousava descer até que ele pudesse assegurar-se de que o processo não acabaria por matá-lo.
Ele fez alguns ajustes e uma das duas cápsulas salva-vidas com os quais a nave era equipada escorregou para fora do seu encaixe e lentamente flutuou até a lua abaixo. Era um truque velho, mas ainda assim, eficaz.
Sob a gravidade infinitesimal de Deimos, a pequena embarcação mal parecia se mover pelo espaço, apesar do empurrão inicial. Meia-hora, 45 minutos, uma hora… e então o pequeno projétil atingiu a superfície. Houve uma espécie de borrão visível no momento em que o objeto atingiu o chão, uma leve nuvem de poeira subiu por causa do impacto, e lá estava ela, pousada e ilesa.
Uma suave sensação de triunfo brotou dentro dele. Não havia nenhum campo de força!
Suavemente ele manobrou a nave até pousar num pequeno vale bem raso e plano no lado que ficava oposto ao planeta Marte. Os raios do Sol não iriam atingir aquela área por algum tempo; sua nave, escondida nas sombras, teria mais possibilidades de escapar ser detectada.
Ele saiu, uma figura toda coberta em sua roupa espacial, caminhando com dificuldade na superfície pedregosa de Deimos. Primeiro, ele gravou profundamente em sua mente a imagem dos arredores para que ele não tivesse dificuldades em localizar sua nave quando — e se — retornasse, e então direcionou seus pensamentos ao laboratório.
Seu problema era dividido em três partes: encontrar o caminho para o laboratório, evitar ser notado, e localizar a Solução Química Pineal.
Primeiro, ele deveria localizar a entrada.
Ele tentou se mover, mas mal havia contraído seus músculos quando de repente perdeu o equilíbrio, girou no ar fazendo um arco e começou a cair numa lerdeza torturante. Quando tentou se levantar, acabou girando mais uma vez numa segunda e ridícula cambalhota.
Calvin soltou um palavrão amargo.
Ele não fazia ideia para onde estava indo, mas também não se importava muito. Obviamente, ficar parado não o levaria a nada, porém se continuasse a se mover em algum momento esbarraria em algo mais cedo ou mais tarde. Era uma generalização bem vaga. De repente, no meio de um dos seus esquisitos, flutuantes e giratórios saltos, ele enrijeceu totalmente o corpo e caiu estatelado no chão, quase sem respirar.
Vindo de algum lugar um pouco à frente, ele ouviu aquele dissonante e desagradável tom da fala marciana. Seu receptor captava os sons claramente mas ele não conseguia entender uma palavra sequer. Ele só era capaz de entender a língua marciana se pronunciada bem devagar e, quanto a falar o idioma — bem, era organicamente impossível para um Terráqueo imitar os sons da língua marciana.
Havia dois deles. Calvin os viu através de uma fenda por entre as pedras à sua direita. Ele mal conseguia respirar. Será que havia, sim, um campo de força? Será que estavam procurando por ele? Se a resposta fosse positiva não havia esperança de permanecer escondido.
De repente ele compreendeu a expressão “intervalo de descanso” na língua marciana, e o som daquela fala interrompeu-se tão rapidamente como havia iniciado. Uma das criaturas caminhou apressadamente em direção ao horizonte, ridiculamente perto de onde ele estava. Enquanto Calvin sentia inveja daquela caminhada tranquila, o outro se aproximou de uma parede de pedras, tocou em uma protuberância e adentrou por uma cavidade que, em consequência, se abriu.
O coração do Terráqueo deu um salto de alegre surpresa. Os deuses do espaço deviam estar ao lado de Calvin, pois bem diante dele se encontrava agora o meio de conseguir entrar. Ele sentiu uma certa superioridade diante daqueles marcianos que escondiam tão mal o seus segredos.
Com muito trabalho, centímetro a centímetro, ele se aproximou da parede para dentro da qual o outro havia desaparecido. Encontrou facilmente a pequena alavanca de metal; não havia nenhuma tentativa de tentar escondê-la. Se estivesse na Terra, isso cheiraria a uma armadilha, mas ele sabia que os Marcianos eram desprovidos da emoção necessária e poderosos demais para recorrer a esse tipo de trapaça.
Ele entrou, como esperado, em uma câmara hermeticamente fechada. A porta interior abriu; ele se encontrava no início de um corredor longo e estreito, cujas paredes brilhavam com uma suave luminescência amarelada. Era absolutamente reto e a falta de lugares para esconder-se perturbava Calvin. Ainda assim estava vazio, e não havia nada que ele pudesse fazer a não ser atravessar.
Quanto mais ia vencendo a distância que o separava do final daquele interminável corredor, mais sentia que a gravidade mais leve de Marte ia ficando mais confortável, se comparada com a total falta de peso de alguns minutos atrás — suas solas de aço não faziam nenhum som ao tocar naquele piso que absorvia totalmente o impacto. O corredor terminou em um balcão e Calvin ficou ali por um momento, contemplando o que havia diante dele.
O interior do complexo era completamente visível, esculpido para ser um único e gigantesco salão, particionado em diferentes níveis e seções. Eixos de elevadores e pilares de apoio se estendiam por alturas vertiginosas em uma multiplicidade atordoante. Lá embaixo, tão distante que parecia se perder em meio a uma névoa, um maquinário maciço se avolumava. Ao alcance da mão havia uma variedade assustadora de aparelhos e controles. E por todo o lado, pra lá e pra cá, apressados marcianos.
Havia uma porta entreaberta atrás dele e, com um pequeno salto, atravessou-a. Ela levava a um cômodo vazio, alguma espécie de armário ou despensa. Ali dentro ele desaparafusou seu capacete, respirou fundo aquele ar fresco e revigorante, e parou pra pensar o que faria a seguir.
No momento ele estava sem saída, pois o local estava enfestado de marcianos. A incrível sorte que havia tido até aquele momento já devia estar prestes a acabar e, mesmo naquele esconderijo, ele não estava totalmente seguro. Então, de repente, o brilho amarelado das paredes desapareceu, dando lugar a um outro brilho, azul, fantasmagórico.
Calvin levou um susto e sua tensão aumentou ainda mais. Será que era um sinal de que havia sido descoberto? Será que estavam fazendo jogos psicológicos com ele?
Foi quando outra mudança chamou sua atenção, interrompendo seus pensamentos. O som intermitente que impregnava todo o complexo havia diminuído até desaparecer e dar lugar a um silêncio profundo. O medo foi substituído pela curiosidade, e Calvin abriu a porta muito lentamente e saiu, na ponta dos pés. O imenso laboratório também estava reluzindo com a mesma luz azul esquisita, e Calvin sentiu algo como pequenos dedos gelados de inquietação passeando pela sua coluna vertebral enquanto ele examinava a área, que agora era um reino de sombras suaves, muito mal iluminado por uma luz fraca e triste.
Ele lembrou das duas palavras que ouvira um dos marcianos murmurar na superfície: “intervalo de descanso”. Era o que tudo isso significava! A esperança retornava. Sua sorte ainda se mantinha firme!
O próximo passo era localizar o segredo da Solução Química Pineal. Ao observar em mais detalhes aquela vastidão escura, tão apavorante em sua extensão, e tão misteriosa no que diz respeito ao que ela esconde, pela primeira vez ele se deu conta do tamanho da tarefa que tinha diante de si.
Ele parou por um minuto para pensar. O laboratório teria que ter sido montado de uma forma lógica, que servisse aos propósitos dos marcianos. O que tinha que fazer era localizar primeiramente a seção dedicada à Química e, se não desse em nada, supondo que ele ainda estivesse solto por aí, tentaria a seção de Biologia.
O elevador, que mal podia enxergar em meio àquela frágil luz azulada, estava a uma curta distância a sua direita. Por sorte, a energia não havia sido totalmente desligada durante o intervalo de descanso e Calvin pode descer até o andar mais baixo — a uma velocidade que o deixou praticamente sem ar.
Calvin sacou sua lanterna. Ele teria que usá-la agora, mesmo arriscando ser descoberto. O fino facho de luz revelou gigantes estruturas ao seu redor, que se estendiam mais longe do que a luz de sua lanterna podia alcançar. O terráqueo não as reconheceu, apesar de ter alguma familiaridade com a ciência terrestre, mas não pareciam ter nada a ver com o estudo de Química. Escolhendo cuidadosamente o caminho através de pistas estreitas que corriam por entre as estruturas, com a lanterna sempre apontando o caminho, finalmente emergiu em um espaço relativamente aberto.
Era óbvio que ele estava em alguma espécie de sala geradora de força. A sua direita, um gigantesco motor que, mesmo desligado, passava uma aterradora aura de poder. Diretamente a sua frente havia um pequeno gerador atômico. Ele observou o objeto com certo interesse, pois a Terra havia dado somente alguns passos incertos em direção ao desenvolvimento da energia atômica. Mas ele não tinha muito tempo e teve que deixar pra lá.
Ele alcançou uma área espaçosa do laboratório, ocupada somente por mesas baixas nas quais havia objetos envoltos por alguma coberta, que pareciam aumentar de tamanho na suave luz azul mas que pareciam pular para fora das sombras quando o facho de luz passava por eles.
O cheiro da formalina atingiu as narinas de Calvin e ele se deu conta imediatamente que estava em uma sala de dissecação. Ele se contorceu ao mero pensamento do que poderia haver por debaixo daquelas cobertas e apressou o passo.
Um pouco mais adiante ele passou por entre gaiolas de arame e um nauseante cheiro de vida animal o alcançou. “Wombos” marcianos, “skorats” de Europa, e camundongos brancos terrestres comuns guincharam e chiaram por causa da intrusão. Calvim mal deu uma olhada neles e seguiu caminho.
Havia prateleiras e mais prateleiras com garrafas de formato cúbico contendo o inseto marciano de criação rápida que havia substituído a clássica mosca-de-frutas — mesmo na Terra; filas e mais filas de culturas de bactérias; pilhas e mais pilhas de lentes, espelhos e outras quinquilharias de uso ótico. Calvin sentia-se como se estivesse em uma espécie de museu, no qual cada canto apresentava algo novo e surpreendente e que, sob nenhuma circunstância, se repetia.
Ele estimou ter passado mais de uma hora e meia em uma busca que não deu em nada até dar de cara com uma sala que continha vários produtos químicos. Dividida em duas por uma parede que batia na cintura e que continha receptáculos de alto a baixo contendo todo o tipo de containers — de vidro, de cera e de borracha — que continham soluções para testes de variedade infinita. Acima de tudo, indistinguíveis uns dos outros, misturavam-se os odores de todos aqueles produtos químicos, criando uma atmosfera tangível que o relembrava vividamente das aulas de Química do segundo grau.
Ele apontou a lanterna para cima e encontrou o “teto”, que nada mais era que a parte de baixo do segundo andar. Um dos onipresentes elevadores se encontrava ao seu lado. Ele entrou e começou a subir silenciosamente.
No segundo andar, e no terceiro, e no quarto, seus olhos encontraram o mesmo cenário. Receptáculos para outros produtos necessários em Química: tubos, frascos, todo o tipo de conteiners de vidro de formas complicadas, tubos de borracha, pratos de porcelana e cadinhos de platina.
Então ele chegou aos laboratórios de testes e, ao fazê-lo, não conseguiu evitar passar mais tempo ali. Havia um tanque cheio de um gás verde e miásmico, com certeza clorina, conectado por uma série de tubos intrincadamente posicionados (no momento fechados por torneiras), ligados a um frasco cheio de um líquido sem cor. Um pouco mais adiante, um fluido fosco pingava lentamente, surgindo de um par de longas buretas e caindo em dois frascos que continham alguma substância química roxa que fervia.
Do outro lado, à distância, quase fora do alcance do feixe de luz, havia uma complicada teia de tubos de vidro, no centro da qual havia uma proveta sobre uma pequena chama. Dentro, um líquido viscoso e vermelho borbulhava e gorgolejava, e Calvin foi capaz de sentir o odor penetrante que emanava.
A quantidade de andares parecia não ter fim. Após passar pelo décimo-sétimo andar, chegou ao laboratório de análises. No vigésimo-quinto andar ele reconheceu instalações para Química-orgânica; no trigésimo-quinto, Química-física; no quadragésimo, Bioquímica.
Era uma enorme conquista digna dos super-seres marcianos porém, para Calvin, representava a derrota. Nada do que ele viu forneceu a menor pista da natureza ou da composição da Solução Química Pineal, e em nenhum dos andares ele encontrou nem ao menos um arquivo de notas, ou mesmo algo que parecesse uma biblioteca de Química.
Só faltava investigar o nível mais alto, porém ele estava totalmente vazio. Era enorme, mais de 100 metros em todas as direções, era o que conseguia estimar naquela fraca luz azul. Mas tudo o que ocupava o espaço eram estruturas baixas e cúbicas que ficavam encostadas na parede.
Havia centenas desses cubos, rodeando todo o compartimento, todas iguais. Tinham aproximadamente um metro de altura, largura e profundidade, cada uma delas em cima de quatro pés atarracados. O lado virado para o centro do salão era feito de um metal vídrico fosco, e os outros lados eram de metal comum.
Na parte de cima de cada uma delas havia um único ideograma marciano, gravado em dourado, e abaixo dele um numeral também na língua marciana. Calvin compreendeu imediatamente o significado. Dizia “Resumo 18”.
Os olhos de Calvin se estreitaram — resumo do que? A explicação lógica seria um resumo de todos os dados referentes ao estudo da Química feito pelos marcianos, uma espécie de enciclopédia de Química. Ele se aproximou dos cubos com uma curiosidade incontrolável, reparando que cada cubo estava marcado com um número diferente. Ele selecionou o que estava marcado com o número 1.
Seus dedos encontraram um segmento protuberante no canto superior direito da face que estava voltada para ele. Uma leve pressão foi suficiente para arrastar a protuberância para o lado e revelar uma pequena alavanca que saía de dentro de uma fenda em forma de meia-lua. Sem hesitar, ele moveu a alavanca suavemente para a esquerda. Imediatamente a face vítrea frontal ganhou vida — um brilho apareceu vindo lá de dentro, algo muito parecido com uma tela de TV da Terra. Mas não era tudo. De baixo para cima começou a surgir lentamente na tela um texto. Calvin leu devagar e com redobrada atenção, pois era um linguajar técnico. É difícil aprender uma língua que não se consegue pronunciar ou reconhecer de imediato. Seu palpite era correto. Estava diante de uma enciclopédia organizada em ordem alfabética.
Ele retornou à alavanca e a colocou novamente na posição central, o que fez com que o texto parasse e que a tela se apagasse. Uma vez mais ele a moveu para a esquerda e o texto retornou. Movendo-a ainda mais para a esquerda, o texto corria na tela ainda mais rápido. Quanto mais ele empurrava a alavanca, mais rápido corria o texto, até que se tornou um borrão cinza na tela. Temendo danificar o equipamento, Calvin retornou a alavanca para a posição central.
Agora, empurrando-a para a direita, o texto começou a mover-se na direção oposta até que alcançou o início e a luz se apagou mais uma vez.
Calvin deu um suspiro de satisfação. Estava claro qual seria o próximo passo. Encontrar o artigo que continha o termo marciano para “glândula pineal”.
Agora que estava tão próximo de seu objetivo, Calvin sentiu suas pernas bambearem.
Mesmo sentindo calafrios crescendo por dentro, ele passou os olhos pela fileira de cubos, buscando por aquele artigo e agradecendo aos Marcianos por também acharem conveniente usar uma organização por ordem alfabética.
Os textos continuavam a subir, frios e sem emoção, milhares de palavras sobre cada aspecto das glândulas pineais. Calvin continuava lendo sem nem respirar, compreendendo não mais do que um décimo do que estava escrito, na esperança de esbarrar com a informação vital que estava procurando.
E finalmente ela apareceu, tão inesperadamente que ele passou direto. Ele começou a rir histericamente enquanto operava a máquina para dar a volta no texto e teve que desligá-la por cinco minutos antes que a dolorosa sensação de alívio que tomava conta dele tivesse diminuído.
Ele leu e releu a descrição da solução química e os métodos para a sua produção. Nada mais era do que bromina, um elemento abundante na água do mar, com uma pequena diferença. A Solução Química Pineal era um isótopo daquele halogêneo; um isótopo que não era encontrado na natureza e que só poderia existir por um limitado período de tempo quando produzido artificialmente. Em uma linguagem enigmática porém concisa, a natureza e a força do bombardeio de nêutrons que produziria o isótopo era descrita, e a informação ficou muito bem guardada no cérebro de Calvin.
E finalmente ele havia conseguido. Agora tudo o que restava era retornar à Terra. Seguramente, após ter realizando tantas façanhas para vencer não só o laboratório mas também o planeta Marte, o retorno não deveria assustá-lo. Um sentimento refrescante de triunfo o atravessava, um triunfo que explodiu em uma gargalhada sonora e que acabou sendo interrompida de repente.
A luz havia mudado! O leve azul deu lugar a um amarelho brilhante de uma forma tão inesperada que o deixou sem ar, desnorteado e cego.
Marcianos apareceram do nada e o cercaram. Calvin caiu para trás, totalmente sem ação diante da mudança total de cenário. E foi assim que, ao reconhecer a face severa e imóvel do Chefe Ancião em meio a aglomeração, todas as suas emoções explodiram em um único fluxo dilacerante de raiva.
Ele sacou sua arma de raios, destravou-a e fez a mira em apenas um movimento, mas sob o olhar frio do líder marciano ele sentiu seu braço adormecer e relaxar. Não adiantava o quanto tentasse, não conseguia fazer seu dedo apertar o gatilho. Em alguns segundos, ouviu o barulho da sua arma caindo no chão.
Seguiu-se um longo silêncio, até que o Chefe Ancião começou a falar. “Você fez um bom trabalho, homem da Terra. Foi um pouco descuidado, mas soube aproveitar quando apareceu a oportunidade.”
Um olhar de surpresa apareceu no rosto de Calvin. “Você estava me observando o tempo todo?” ele exigiu saber. “Me deu esperanças e me deixou atingir meu objetivo somente para arrancá-lo de mim no final?” Era difícil respirar. “Então quer dizer que Marcianos possuem emoções suficientes para ter prazer na crueldade, é isso?”
Calvin sentia-se fraco e impotente.
“Eu já sabia o que você ia fazer desde o começo,” o chefe ancião dizia. “Nós antevemos a possibilidade de uma incursão em Deimos em função da sua psicologia particular, consequentemente removemos os escudos de energia do satélite; revelamos os meios para entrar; inventamos um horário de descanso fictício; evitamos interferir até que você tivesse descoberto sua preciosa arma. O experimento foi um sucesso absoluto.”
“E o que irão fazer agora?” foi a pergunta amarga de Calvin. “Suas explicações não me interessam.”
“Fazer? Como assim? Não faremos nada!” foi a resposta, dita lenta e comedidamente. “Sua nave está a salvo. Retorne à Terra com a arma.”
Os olhos de Calvin se arregalaram. Ele começou a gaguejar palavras sem sentido. Quando recuperou-se o suficiente, conseguiu retrucar violentamente, “Mas você recusou-se a me dar o segredo quando nos encontramos pela primeira vez em Marte!”
“Verdade! Mas nunca dissemos que não o deixaríamos tomá-la. Enquanto a Terra suplicasse por ajuda, continuaríamos a recusá-la, pois cada mundo deve resolver seu próprio destino. No entanto, quando a Terra se nega a aceitar a nossa recusa e, representada pela sua pessoa, faz uma tentativa (mesmo que destinada a falhar) de por em prática um plano sem nem um momento de hesitação, então termina a nossa recusa. Nós não entregamos a arma a você; você a tomou de nós. Pode retornar à Terra agora com a sua arma.”
E foi assim que Preston Calvin aprendeu um pouco mais sobre os processos mentais desse povo alienígena e incompreensível. Ele fez um movimento afirmativo com a cabeça e, com a voz trêmula, sussurrou, “Vocês são um povo estranho, mas fantástico!”
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