1978.IASFM.V02.N01 – Editorial
Este post chega pedindo licença e interrompendo a leitura cronológica dos contos publicados (estamos em 1944 no momento) para trazer hoje a Quinta edição da revista Isaac Asimov’s Science Fiction Magazine (Vol. 02, Número 01, publicada em 1978). A partir deste número, as edições passaram a sair bimestralmente nos Estados Unidos.
Seguimos disponibilizando a tradução dos Editoriais de Asimov. A edição de hoje é especial pois Asimov fala sobre o ataque do coração que sofrera em maio de 1977 — e da consequente reação dos amigos e fãs. Aproveitem a leitura! Tradução em português por João Wolf Pereira.
Ao final do post, como sempre, você também encontrará a sessão de cartas da mesma edição, porém em inglês, para quem tiver interesse.
EDITORIAL
Sempre houve uma irmandade dentro da ficção científica que sempre transcendeu as briguinhas triviais e mexericos que, no passado, já mancharam a imagem de fanzines e do augusto grupo dos Escritores de Ficção Científica dos Estados Unidos.
Pode ser que travemos embates entre nós a respeito de assuntos sem maiores consequências mas, na adversidade, juntamos forças como ninguém! Mais que tudo, nosso senso de união se sobrepõe a qualquer sentimento de ‘competição’.
Talvez isso tenha origem nos dias em que a ficção científica era a categoria mais desvalorizada dentro das revistas “pulp”, o beco com as piores oportunidades e o pagamento mais baixo — o pior dos piores, por assim dizer. Por isso, aqueles que eram devotos desse campo se sentiam como párias, isolados, e tinham que se unir para se defenderem. Além disso, aqueles que realmente conseguiam escrever para a mídia tinham que saber que o faziam por amor e não pela grana, e eles tinham que se sentir como uma irmandade. Como poderia haver competição se não havia nem dinheiro nem fama pelos quais competir?
Pode ser que aqueles que entrem nesse campo nos dias de hoje — após a ficção científica ter sobrevivido à morte das revistas “pulp” — após ter entrado num período de respeito quase exagerado, tanto para o público em geral como para os acadêmicos — após ter invadido triunfalmente as mídias visuais — pode ser que esses não se sintam tanto como membros de uma fraternidade assim tão unida, como nós, dos velhos tempos (se é que posso usar esse termo para alguém como eu, que acabou de passar dos trinta), nos sentíamos. Se for assim, sinto muito por eles.
Eu tomei consciência disso uma vez mais quando passei por uma situação um tanto quanto humilhante para alguém com minha tão conhecida e vigorosa juventude. O que aconteceu foi que, no dia 18 de maio de 1977, eu sofri um leve infarto do miocárdio — ou, se você quer usar o termo mais comum, um ataque do coração. (Não tema, ó Gentil Leitor, eu sobrevivi e o prognóstico é bom, desde que eu perca peso, faça um pouco de exercício e alivie um pouco a minha determinação inumana em cumprir prazos.)
A primeira pergunta que meu médico me fez (um profissional incrível, o melhor do mundo, na verdade) foi se eu gostaria de ir à público sobre o assunto.
“Claro”, eu disse. “Com certeza irei escrever artigos sobre isso.” (Está vendo?)
Então fizemos isso, e imediatamente pessoas de toda a minha família e escritores e leitores de ficção científica de todo o país começaram a entrar em contato para expressar sua preocupação. Harlan Ellison, com uma emoção que contradizia totalmente a persona de durão que ele cultiva tão diligentemente quanto eu cultivo a minha persona de modéstia e auto-satisfação, ligou duas vezes da Califórnia e se ofereceu para pegar um avião e ajudar como pudesse. Naturalmente, demos uns berros com ele para que desse mais atenção à sua máquina de escrever e parasse de se preocupar.
Fui forçado a cancelar todos os compromissos por um período de seis semanas, incluindo o discurso de formatura que eu faria na Universidade Johns Hopkins apenas dois dias depois. Na verdade, foram oito dias após o ataque, mas meus sintomas foram muito confusos e inicialmente pareciam indicar cálculos biliares, então levou um tempo até chegar no diagnóstico correto. Eu então disse ao meu médico que dois dias não fariam mal e que eu deveria fazer o discurso. Meu médico, no entanto, muito irritado comigo por eu ter ousado apresentar sintomas atípicos que atrasaram o início do meu tratamento, me colocou numa unidade de tratamento cardíaco em menos de uma hora.
A maioria dos meus compromissos, dentro do possível, foi cumprida pelos meus amigos da família da ficção-científica, que correram pra lá e pra cá pra me substituir. George Scithers foi em meu lugar até a Brown University, e adivinhem quem me substituiu em outras três palestras, chegando ao cúmulo de se forçar à indignidade de alugar um smoking para uma delas? Ninguém menos do que meu concorrente direto, Ben Bova, editor da revista Analog.
A revista Analog, e a sua antecessora, Astounding, lideram o campo tanto em circulação quanto em prestígio por mais de um terço de século; e esta revista que o leitor tem em mãos tem a intenção de alcançá-la e ultrapassá-la e, é óbvio, Analog prefere que não consigamos nada disso.
Mas isso não afeta Ben e eu. Éramos amigos antes, somos amigos agora e seremos amigos no futuro, ganhando ou perdendo, já que a ‘competição’, não importa o resultado, só tem a beneficiar a ficção-científica, e a ficção-científica é a nossa vida e nossa irmandade.
Ele veio visitar-me no hospital e eu disse a ele, “Ben, como foram as palestras? Você se lembrou de não ser tão bom quanto eu?”
“Eu fui uma porcaria”, ele disse.
“Não foi, não, Ben”, eu disse, acusadoramente. “Todos estão dizendo que você foi ótimo e que ninguém vai me querer mais como palestrante — então eu contratei um pistoleiro pra dar cabo de você. Lhe darei o beijo da morte”.
“Hah!” disse Ben, fazendo escárnio. “O que um judeu sabe a respeito do beijo da morte? Somente nós, os italianos, podemos dar o beijo da morte.”
Frustrado, eu disse, “Muito bem, eu estou em débito com você por me substituir. Como posso um dia lhe pagar?”
“Do que você está falando?” disse Ben. “Eu tenho estado em débito com você por anos e ainda estou procurando uma forma de pagar a você. Isso não foi nada.”
“Mesmo o smoking alugado?” eu disse, sem conseguir acreditar.
Isso o deixou balançado. Mas aí ele falou, em uma voz grave, sofrida, “Mesmo o smoking alugado.”
“Você está doido. Eu é que estou devendo a você.”
E a conversa seguiu em uma ladainha sobre quem estava devendo a quem, até que uma enfermeira, olhando para nós com uma cara de desaprovação, fechou a porta pois estávamos perturbando o andar inteiro.
“Como você pode se sentar aí, Ben,” eu disse, num tom zangado, “nessa sua inocência italiana e se recusar a levar o crédito, ativando, assim, minha culpa judaica, sabendo que meu coração não poderá resistir a toda essa tensão?”
“Que inocência italiana?” ele disse, num tom tão zangado quanto. “É por causa da superstição italiana. Com certeza você ouviu falar da superstição italiana?”
“Qual superstição?”
“A que diz que levar o crédito e, por conta disso, lucrar com o sofrimento de um amigo, traz má sorte.”
“Do que você está falando? A Máfia…”
“Ah, então,” disse Ben, “é diferente se é você que causa o sofrimento.”
E eu caí na gargalhada e a discussão se encerrou.
Mas muito obrigado Ben, e muito obrigado à toda a minha família da ficção-científica, editores, publishers, escritores e fãs, que fizeram com que minha estadia no hospital tenha sido tão cheia de flores e presentes e visitas e cartões que acabei saindo um dia mais cedo por solicitação geral da equipe do hospital.
—Isaac Asimov
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