1977.IASFM.V01.N03 – Editorial

EDITORIAL

Todo entusiasta de ficção científica se depara com ocasiões onde deve defender sua arte quando é questionado ou atacado por pessoas de fora. Eu já passei por essas ocasiões mais vezes do que a maioria, já que eu estou nesse campo por um período de tempo longo demais para quem tem só um pouquinho mais de 30 anos, e porque eu sou um notável membro desse campo.

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Eu tenho uma lista enorme de coisas positivas para falar sobre o nosso campo, basta escolher. Uma que raramente eu uso, porque é muito especializada e restritiva para o público em geral, é que ela dá uma oportunidade sem igual para o escritor de ficção científica.

Considere por um momento o fato de que a humanidade já possui por volta de 5.000 anos de literatura, e que ela inclui alguns escritores que eram muito bons mesmo em explorar a condição humana e a interação entre o homem/mulher/universo. De Homero a Bellow, passando por Vergil, Shakespeare e Tolstói, tivemos gênios trabalhando com isso.

Que difícil se tornou, então, para que escritores descubram algo de novo a dizer.

É aí que a ficção científica vem ao resgate, permitindo a nós que abandonemos o universo de Homero e de Shakespeare, e que tenhamos um vislumbre de algo novo — um Universo que não foi ainda experimentado por ninguém e que é capaz de existir na imaginação fértil daqueles que, através do seu talento e prática, conseguem construir do nada um mundo cheio de vida e luz.

Sim, Homero criou o Olimpo e suas divindades, e todos os escritores de ficção criam o que não existe — mas o escritor de ficção científica possui uma tarefa especial. Ele joga um jogo com regras, enquanto o escritor de fantasia, o mitologista e o mentiroso comum não o fazem. O escritor de ficção científica aceita as regras do Universo (as “leis da natureza”) e trabalha dentro desses limites. O resultado é que o escritor de ficção científica tem uma chance, que os outros não tem, de antecipar, de descobrir que o que ele criou a partir de sua imaginação pode se tornar realidade um dia.

No meu conto “Nós, Os Marcianos”, escrito em junho de 1952, fiz com que meus personagens, num determinado momento, flutuassem no espaço, com suas roupas espaciais conectadas à espaçonave através de um cabo. Eu levei quatro páginas descrevendo a euforia envolvida no processo, e fiz meus personagens debaterem se alguém estava deliberadamente esticando a sua vez de ficar lá fora ou não. Até onde eu saiba, ninguém havia até então pensado em ficar pendurado no espaço por prazer; só se havia feito isso por necessidade.

No entanto, quando o homem começou a caminhar no espaço em 1965, 13 anos após eu ter escrito a história, aconteceu que os astronautas tinham que receber ordens com uma certa firmeza para retornar à espaçonave, porque eles gostavam de ficar lá fora.

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É um sentimento gostoso saber que você acertou, e que criou tudo da sua cabeça.

Além disso, há um certo prazer sádico em cutucar noções estabelecidas na cabeça das pessoas. Eu estava tão acostumado a ouvir que o espaço era um ambiente hostil e mortal, que deliberadamente resolvi mudar meu ponto de vista. É a gravidade e o ar e o oceano e a luz do Sol muito forte que são hostis e mortais. O espaço profundo, sem nada dessas coisas, é tranquilo. Claro que você precisa de uma roupa espacial para suprir as suas necessidades no espaço — mas até aí, você também precisa de comida, roupas e abrigo para suprir suas necessidades na Terra.

E se vamos falar sobre inversão de noções estabelecidas, considere o seguinte:

Qual tem sido uma das maiores constantes universais na ficção senão o poder do amor? Homero não ousou contar sua história sobre a Guerra de Tróia enquanto um episódio movido por ganância e rivalidade — isso não seria plausível. Em vez disso, ele a contou como uma história sobre o amor conflitante de Paris e Menelau por Helena. Aí sim havia convicção.

Acreditamos que o poder do amor pode fazer de tudo. O amor tudo conquista. Ou, como disse Virgílio, em Latim, e em ordem inversa de palavras, “Omnia vincit amor.”

O engraçado é que nós acreditamos nisso mesmo tendo evidências diárias que não é assim que funciona. O amor é muito fraco e as pessoas desistem dele por causa dos mais leves pretextos. A ganância tem precedência, a ambição tem precedência; o desejo de dormir, por comida, por assistir a um jogo de futebol, por não fazer nada, tem precedência.

Os divórcios são mais frequentes a cada ano e os casais que estão se divorciando (que estiveram um dia, presumivelmente, apaixonados) brigam por causa dos motivos mais banais. Pior ainda são os casais que não se divorciam, que continuam casados — e que o fazem sem um pingo de amor.

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Pra ser honesto, há momentos em que o amor parece ser capaz de conquistar tudo. Se estiver absorvido em um momento de desejo (real ou ilusório) quase todo mundo poderá fazer algo idiota e se arrepender depois. E sempre há aqueles que, sim, amam por períodos longos de tempo e que continuarão desfrutando colocar o bem do seu parceiro acima do seu próprio (dentro dos limites da razão).

Eu imagino que seja justamente porque as pessoas não vivenciam esse amor que conquista tudo que elas insistem em tê-lo na ficção. Naqueles casos em que os personagens agem como se fossem pessoas reais e colocam outras coisas na frente do amor, elas são vaiadas e odiadas.

Quando Scrooge deixa sua namorada ir embora porque seu desejo por riqueza está ficando poderoso demais, nós o desprezamos sem ao menos deixar esse sentimento afetar o nosso próprio desejo por riqueza. Quando Scrooge se redime no final e embarca em um curso de ação que o levará a falência dentro de um mês, nós o aplaudimos mas sem nunca ficarmos tentados a segui-lo. E quando Cyrano age como um jumento por causa de uma garota sem nem ao menos uma característica que o redima a não ser um rosto vazio e bonito, nós o aplaudimos e até choramos por ele, apesar de nunca fazermos como ele, a não ser se fosse por uma boa soma em dinheiro.

Mas será que somos capazes de esquecer nossa tola visão ficcional do amor por tempo suficiente para admitir que existem coisas que vêm e deveriam vir antes dele?

Claro! O Amor por Deus deveria vir antes, tal como nossa heroína marcha bravamente em direção ao convento de freiras. Certo? A Honra deveria vir antes, tal como nosso herói marcha bravamente para a guerra. Certo?

E o que nos resta além desses exemplos gastos e fora de moda?

Para isso precisamos recorrer à ficção científica. Leia “Joelle”, de Poul Anderson, por exemplo.

– Isaac Asimov

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